quarta-feira, 16 de abril de 2008

Para nossa aula de 17/04

Naufrágio da tradição

Em "Órfãos do Eldorado", Milton Hatoum se afasta da tradição novelesca européia e despreza a abordagem regionalista

LUIZ COSTA LIMA
COLUNISTA DA FOLHA

Por sua configuração mais curta, a novela exige um relato sintético. Como, entretanto, fazer com que o menor espaço narrativo não prejudique a complexidade do relato? Nenhuma resposta abstrata é cabível. Só podemos apontar para casos modelares. Por exemplo, para o "Órfãos do Eldorado", o novo livro de Milton Hatoum.

Para o leitor que conheça seus três romances anteriores e que ainda não haja lido a recente novela essa poderia parecer a retomada de uma temática de perda e dissipação, tendo como espaço Manaus e o Amazonas.

A impressão estará correta desde que o leitor não confunda retomada com repetição. É a síntese própria da novela que impõe a diferença. A diferença será melhor compreendida se antes formularmos o horizonte que envolve essa novela e as obras anteriores.

Em comum, Hatoum despreza a abordagem de tanto prestígio entre nós, fixada entre as décadas finais do século 19 e as primeiras do 20: a abordagem regionalista -uma espécie de realismo de costumes. Despreza-o para que estabeleça uma outra deriva entre a narrativa mítica e a novelesca (abrangendo romance e novela), distinta daquela que se disseminaria a partir da Europa sobretudo do século 18.

Metamorfoses do mito

A tradição novelesca então constituída tivera como matéria-prima situações do cotidiano, que se impunham sobre o fantástico e o maravilhoso derivados dos mitos antigos. O regionalismo era uma deriva daquela tradição novelesca por diferençar o cotidiano de uma certa área geográfico-cultural.

É bem outro o caminho assumido por Hatoum. Ele se dá de maneira comparável ao que se cumpriu tanto no chamado "realismo mágico" latino-americano como no relato curto faulkneriano. Daquele se diferencia por ser antes surpreendente do que mágico, deste por não recorrer a situações escabrosas ou espantosas.

Tais diferenças, contudo, não impedem que os vejamos como integrantes de uma família da qual estão excluídos, por exemplo, Balzac e Flaubert e que exprimem outro modo de transformação da massa mítica.

No caso específico da novela de Hatoum, as metamorfoses do mito se cumprem pelas alterações pelas quais passa a lenda do Eldorado. Miticamente, o Eldorado de que a novela de Hatoum se afasta se confunde com uma cidade submersa e encantada.

Ele deixa de tematizá-la para que identifique o Eldorado com um naufrágio. É certo que, nos dois casos, o Eldorado é o invisível, o que está fora do alcance do olhar cotidiano. Mas essa comunidade de sentido importa apenas para que se confirme o afastamento quanto à tradição novelesca européia.

Na novelística de Hatoum, o naufrágio tem uma tríplice dimensão. É do cargueiro assim chamado, em que se concentrava a riqueza paterna do narrador; nominalmente, é da ilha para onde foge a órfã amada, de quem tampouco se sabe se fora filha ou amante de seu pai; e, sobretudo, do poder e da riqueza que haviam sido de seu avô e de seu pai.

A passagem do tempo, concentrando-se o relato na geração do neto, apresenta pois uma derrocada progressiva. Ela se consuma com a venda da residência em Vila Bela e a extensa propriedade em área vizinha. O narrador é portanto o estróina do que fora acumulado por duas gerações?

Sim, mas não só. Enriquecer ali significa, como sucedera com o avô, usufruir do massacre de nativos e caboclos, apossando-se então da área que os mortos ocupavam e, como o pai, auferir os ganhos de contrabandista e as vantagens propiciadas por seu relacionamento com os políticos.

Múltipla orfandade

O Eldorado mítico é algo, portanto, que se destrói com a passagem para o relato novelístico. Esse não prolonga o mito pelo que então seria sua... mitificação, senão que, ao contrário, demonstra como à mudança no regime narrativo correspondeu uma múltipla orfandade. Essa só é nomeada pela combinação entre o narrador, que, estróina, não tem a energia acumulativa do avô e do pai, e o conhecimento das transações destes pelo amigo, advogado e amante da poesia, que funciona como o mediador entre o pai e o filho, convertido em quase mendigo.

Relações eróticas

Tal combinação, ademais, sucede entre alguém que se mantém solteiro, o advogado e leitor dos poetas, e o estróina, sufocado por um erotismo que, duas vezes, o põe numa contigüidade extrema quanto ao pai: ainda em criança, ao ser sexualmente iniciado pela índia que presta "serviços" ao patriarca, depois, ao se apaixonar por aquela que, depois de entregar-se a ele, desaparece, refugia-se numa ilha (chamada Eldorado) e de quem o amigo advogado declara não saber se era sua irmã ou amante de seu pai.

Em suma, a destruição do Eldorado mítico interfere diretamente no campo das relações eróticas.

Nada estranha, por isso, que, na procura da mulher amada, o narrador, ao chegar ao local em que provavelmente está ela refugiada, nele encontre, além do "cheiro e o asco dos insetos", apenas a solidão: "Aquele lugar tão bonito, o Eldorado, era habitado pela solidão".

LUIZ COSTA LIMA é crítico e professor da Universidade do Estado do RJ e da Pontifícia Universidade Católica (RJ). Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.

ÓRFÃOS DO ELDORADO Autor: Milton Hatoum Editora: Companhia das Letras Quanto: R$ 29 (112 págs.)

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Livro sobre o "Suplemento Literário", do "Estado de S. Paulo" expõe atual elitização da leitura

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Meio século e um ano atrás, "O Estado de S. Paulo" resolveu pagar bem a um grupo de intelectuais de primeira linha para produzir uma "apensa" ao jornal: seis páginas semanais dedicadas à literatura, sob o título de "Suplemento Literário".

Basta mencionar os nomes dos editores e colaboradores para ter certeza da qualidade do produto: Antonio Candido, Décio de Almeida Prado, Paulo Emílio Salles Gomes, Lourival Gomes Machado, Leyla Perrone-Moisés, Nilo Scalzo, entre diversos outros.

Quem ilustrava os textos dessa gente eram artistas como Aldemir Martins, Clóvis Graciano, Marcelo Grassman, Di Cavalcanti, Maria Bonomi, Hilde Weber, Renina Katz, Wesley Duke Lee, Livio Abramo. A história deste marco da cultura brasileira, que viveu de 1956 a 1974, está relatada em "Que Falta Ele Faz!", de Elizabeth Lorenzotti. Trata-se de documento inestimável para a história do jornalismo e da vida intelectual do país.

Dentre os registros que ele traz, de incalculável valor para os profissionais e estudiosos da comunicação atuais, está a reprodução fac-similada do projeto que Antonio Candido apresentou a Júlio de Mesquita Neto e Ruy Mesquita para o suplemento e foi integralmente aceito pelos diretores do jornal. Em toda a sua existência, o "Suplemento Literário" não sofreu censura nem pressões.

O plano original foi cumprido à risca, independentemente das tensões ideológicas e econômicas que o país viveu, como relatam seus sobreviventes. Mas a sociedade mudou, o jornalismo também e o suplemento acabou. Lorenzotti diz que ele faz falta. Mas o fato é que aqueles seus objetivos de "servir como instrumento de trabalho e pesquisa aos profissionais da inteligência" e "nunca transigir com a preguiça mental, com a incapacidade de pensar" talvez tenham deixado de fazer sentido no mundo contemporâneo.

Sem pessimismo saudosista, é difícil fugir à realidade de que hoje em dia lê-se cada vez menos. Não só aqui no Brasil; no mundo todo.

Sete minutos por dia

O National Endowment for the Arts (entidade pública independente nos EUA) divulgou no ano passado pesquisa segundo a qual os jovens americanos entre 15 e 24 anos gastam em média sete minutos por dia de semana em leitura voluntária (ou seja, não como tarefa escolar obrigatória). A venda de livros nos EUA caiu de 8,21 por habitante/ano em 2001 para 7,93 em 2006. A despesa com livros por domicílio americano em 2007 foi a mais baixa em 20 anos, e o preço médio cresceu substancialmente -ou seja, as pessoas estão consumindo menos livros.

No Brasil, embora as livrarias estejam comemorando um crescimento de 15% em seu faturamento em 2007 em relação ao ano anterior no bojo da onda do aumento generalizado do consumo, não há nenhum sinal de que o número de leitores ou que o tempo gasto em leitura estejam também subindo.

Neste cenário, será que o "Suplemento Literário" ou algo do seu gênero teria como existir? Provavelmente não se o jornalismo se mantiver no mesmo rumo que tem seguido nas últimas décadas.

No último quarto do século 20, o jornalismo impresso resolveu enfrentar o avanço dos meios eletrônicos sobre o consumidor de informação mimetizando os adversários. A fórmula mais apurada desse processo foi o diário "USA Today", que tentava aparentar-se a uma TV no papel. A estratégia deu certo por uns tempos. Mas, depois de cerca de 20 anos, o próprio "USA Today" resolveu editar textos mais longos e aprofundados, aparentemente convencido de que o público dos veículos impressos nunca mais irá crescer e exige material de qualidade superior.

Na edição de 24 de dezembro da revista "The New Yorker", o escritor Caleb Crain especula sobre a possibilidade de que "a leitura de livros por prazer um dia se tornará o domínio de uma "classe de leitores" especial, à semelhança da que existiu até a segunda metade do século 19, quando chegou a leitura de massa".

Ler ficção poderá se tornar um hábito arcano de uns poucos, que poderão desfrutar de prestígio social ou não. Se e quando isso acontecer, talvez os jornais impressos venham a ser o veículo preferencial dessa casta, e aí, então, produtos como o "Suplemento Literário" realmente farão falta e poderão voltar a existir.

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA é livre-docente e doutor em comunicação pela USP e diretor de relações institucionais da Patri Políticas Públicas.

SUPLEMENTO LITERÁRIO - QUE FALTA ELE FAZ!
Autora: Elizabeth Lorenzotti Editora: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo (tel. 0/xx/11/ 6099-9800) Quanto: R$ 40 (208 págs.)

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